O OUTRO LADO DA FOLIA

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O OUTRO LADO DA FOLIA

Realizada a primeira sessão ordinária do projeto Câmara Itinerante, no último dia 27 na Barra, o que se viu foi o reaquecimento da discussão sobre os efeitos negativos do atual modelo de carnaval para o bairro. A queixa foi geral. Muitos vereadores se manifestaram a favor de uma discussão mais ampla sobre o tema com a inclusão de representantes da Barra nas decisões sobre seu planejamento e organização. Porque a percepção de que este modelo já não cabe mais no bairro foi evidente.

Certo é que a banalização dos absurdos tem feito o carnaval da Barra um  negócio ainda rentável e agradável para muitos. Entretanto, o discurso da geração de renda e alegria para a cidade vem perdendo força ante o grito do “outro lado da folia”.

A Barra possui vocação incompatível com o agigantamento atual do carnaval. É um bairro residencial com comércio pulsante, possui patrimônios culturais extraordinários e é uma das maiores atrações turísticas da Bahia. Sem eventos ela já é um grande acontecimento e palco do seu próprio espetáculo!

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Qual a vocação da Barra?

 

Porém, há quem goste do bairro justamente por sua “carnavalização”. Para estes a Barra não passa de uma arena para todo e qualquer tipo de evento. Tratam-na como mera embalagem descartável sem se importar com o apodrecimento do seu conteúdo. O carnaval que aí está é o maior exemplo. Patrimônio cultural é um detalhe.

Por ser contra a “carnavalização”, e a favor do correto aproveitamento da sua vocação natural, fui com minha curiosa ignorância em busca de leis que pudessem respaldar esta posição. Ou, talvez, a posição dos que pensam diferente.

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“Carnavalização” cultural da Barra.

Direto à Constituição Federal, vi de cara, no artigo 23, que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos, além de impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de todos eles.

Para ficar claro, no art. 216, a Constituição Federal considera “Patrimônio Cultural Brasileiro” os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem, dentre outros, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Diz ainda que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o “patrimônio cultural brasileiro” por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

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Promoção, proteção do patrimônio cultural (?)

Eis que a orla da Barra é um Patrimônio Cultural! Possui conjunto urbano e sítios de valor histórico, paisagístico, ecológico, arqueológico e científico. Tanto que seus Fortes são tombados pelo IPHAN e está em curso a implantação do Parque Municipal Marinho da Barra pela importância de seu conteúdo. Trata-se, ainda, de uma das mais belas paisagens da Bahia.

Proteger este acervo não é opção, é obrigação dos cidadãos e dever de ofício de todas as esferas de governo. Não é questão de gosto, é de lei! Então porque estas leis não se aplicam ao carnaval da Barra com a mesma eficiência que aquelas que me obrigam a pagar IPTU e multas de transito? Será que seguem a lógica da conveniência, como tudo neste país?

O que vimos no Farol este ano foi lamentável. Sua descaracterização e degradação dispensam comentários. Será que a caricata fantasia que escondeu sua beleza o excluiu da qualidade de patrimônio histórico nacional tombado?

Espuma
Limpando as ruas, sujando o mar.

Na área do Parque Marinho o lixo e a espuma da lavagem das ruas e banheiros químicos certamente tornaram as praias impróprias durante toda a festa. E afetaram seu ecossistema. A espuma é biodegradável, mas, e o lixo que ela carrega para o mar?

O que dizer da ocupação do mesmo espaço por dezenas de embarcações ancoradas sobre os naufrágios? São sítios arqueológicos protegidos pela lei, não são?

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Conjunto urbano e sítios arqueológicos em xeque…

Também sofrem comerciantes e moradores. As queixas estão crescendo em razão dos prejuízos, do sucateamento do potencial do bairro para investimentos de qualidade, do barulho, da depredação de vias e equipamentos públicos, da montagem e desmontagem do circo, etc…  Tem lei para isso, não tem?

Comercio
Comércio da Barra? Só um detalhe…

E sobre o trabalho análogo ao escravo que, dentre outras coisas, é reduzir alguém a esta condição submetendo-o a jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho? Está lá no art. 149 do Código Penal brasileiro. É quando a farra termina e o dia amanhece que famílias inteiras de ambulantes e assemelhados de baixa renda, negras em maioria, que passam a morar pelas ruas do bairro, formam o retrato fiel desta submissão. Será que ficam todos invisíveis durante a festa?

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Jornada exausitva e condições degradantes de trabalho

Há muitos desatinos ganhando status de normalidade ao longo dos anos. A impressão é que o poder público se intimidou pelo assédio de interesses que não são públicos, mas, de determinados públicos, e apequenou-se ante a banalização de muitas “curiosidades”, digamos assim.

Caso contrário, como justificar a leniência dos órgãos de Direitos Humanos, do Trabalho, MP, IPHAN e Câmara Municipal, por exemplo? E a OAB? Existem questões de interesses difusos e coletivos sendo ameaçados. Meio ambiente e ordem urbanística são alguns. Por isso crescem os rumores sobre a possibilidade de uma Ação Civil Pública ou uma Ação Popular contra os danos morais e patrimoniais inaudíveis a quem deveria combate-los.

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Esse é o modelo: PIPOCA INDIGNADA e sua alegria sustentavelmente criativa.

Particularmente, acredito na construção de um pacto amistoso com a participação da comunidade local por um carnaval inteligente na Barra. É preciso urgência, coragem e equilíbrio entre os interesses públicos e privados. Vejo boas oportunidades para todos os envolvidos e ganhos significativos para a cidade.

Minha sugestão é por três dias sem trios, camarotes, sem a privatização das ruas, só com blocos e bandas no chão, e hora para acabar. Uma opção alternativa e mais sustentável com menos transtornos para moradores, comerciantes, meio ambiente e turismo.  Discordo dos que querem “carnaval zero” na Barra.

Esta mudança devolverá o protagonismo histórico ao circuito do Campo Grande, transformará o circuito da Barra em uma grande novidade e abrirá novas oportunidades à folia. Talvez um circuito no CAB ou na Av. da França. Ou que se pense definitivamente na construção da tão sonhada CIDADE DO AXÉ, um projeto capaz de gerar negócios muito além do carnaval.

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CAB/ Stock Car: Ideal para um carnaval totalmente planejado para desafogar e oxigenar os circuitos do centro da cidade.

Por tudo isso entendo que a Barra não pode continuar refém de uma festa que tem corrompido patrimônios culturais importantíssimos e comprometido a ordem urbanística da cidade, desnecessariamente. A Câmara Itinerante acatou este entendimento e reascendeu a discussão jogando um pouco mais de luz sobre o “outro lado da folia”.

Agora é cobrar dos vereadores e demais órgão públicos uma atuação menos acanhada e mais responsável na defesa dos reais interesses da cidade para os próximos carnavais. Basta sentar à mesa em um pacto para a construção de um novo projeto para a cidade com as leis embaixo do braço e a consciência livre dos assédios carnavalescos que tornaram banais tantos absurdos. E, urgente! É minha humilde opinião…

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